13 setembro 2007

Orfeu - 4



A vinda de Orfeu e a Grécia clássica



Foi então que apareceu na Trácia um jovem de estirpe real e da mais sublime beleza e sedução. Dizia-se que era filho de uma sacerdotisa de Apolo. A sua melodia da sua voz tinha um estranho encanto. Cantava os deuses de um modo novo e inspirado. Seus cabelos louros, orgulho da raça dórica, corria em ondas douradas sobre os seus ombros. Sua boca, quando cantava, tinha contornos suaves e melancólicos. Seu olhar, de um azul profundo, brilhava com uma força meiga e mágica, perante a qual os Trácios, homens guerreiros, não se deixavam amansar, mas que as mulheres diziam, entre si, misturar a força solar e a carícia lunar. As Bacantes o procuravam e desejam pela sua beleza e sorriam sem compreender o seu cântico. Um dia este jovem, que chamavam o filho de Apolo, desapareceu: dizia-se que tinha morrido, descendo aos infernos. Na verdade, foi secretamente para o Egipto, onde pediu refúgio aos sacerdotes do Templo de Mênfis: estes ensinaram-lhe a sua doutrina e os seus mistérios, confiando-lhe, ao fim de vinte anos de aprendizagem, a missão de voltar à Grécia e, salvando-a das divisões religiosas, pacifica-la com uma nova doutrina; deram-lhe por nome de iniciado, o de Orfeu: “aquele que cura pela luz”.

O mais velho Templo de Zeus, no monte Kaoukäôn, que antigamente reinava sobre a organização social e religiosa de toda a Trácia, agora estava quase desertificado pela supremacia da doutrina lunar. O pequeno numero de sacerdotes que ainda ali permanecia recebeu Orfeu como um salvador: pela sua ciência adquirida no Templo de Mênfis e pelo seu entusiasmo, o maior poeta de todos os tempos ganhou à nova revelação teológica a maior parte dos Trácios, transformando totalmente a figura de Baco na do celeste Dionisios, símbolo do espírito divino que evoluí através todos os reinos da natureza e domando as Bacantes. A sua influência, através dos mistérios órficos, em pouco tempo invadiu todos os templos da Grécia, impôs o reino de Zeus na Trácia e o de Apolo na cidade de Delfos, devendo-lhe a Grécia dórica a sua unidade social e politica, as suas leis e a sua alma, revelada nas artes e nas ciências, que tanto influenciaram Roma e da qual ainda hoje toda a nossa civilização ocidente é herdeira.

Orfeu fundiu, na revelação da doutrina teológica do Dioniso celeste, o culto solar de Zeus e de Apolo com o culto lunar de Baco, num equilíbrio universal e pleno entre o princípio masculino e o princípio feminino: revelou aos iniciados, nos Templos, a luz pura desta verdade sublime, e ao povo, numa luz mais velada sob a alegoria poética e novos ritos e festas, a mesma verdade benfazeja.

A luz de Orfeu brilha na eternidade, pelo seu génio criador e pela sua alma que canta o amor mais puro e profundo entre as eternas essências feminina e masculina que pulsam na natureza, na humanidade e na pátria espiritual. Através dos tempos foi admirado pelos iniciados, pelos poetas e pelos filósofos. É a sua alma que permanece na admiração dos historiadores pela Grécia clássica.

Orfeu - 3



A Grécia pré-órfica - O Culto solar - As Bacantes


Na época pré-órfica, existia na Trácia uma rivalidade entre as religiões do culto solar e do culto lunar, através da qual os sacerdotes de cada uma destas doutrinas teológicas totalmente opostas lutavam ferozmente pela supremacia do seu modelo de organização social. O culto solar tinha seus templos no alto das serras e das montanhas, sacerdotes homens e leis severas; já o culto lunar era realizado nas florestas e nos vales, por sacerdotisas e com ritos que celebravam a volúpia, as artes ocultas e os prazeres orgíacos. Verificava-se uma guerra de morte entre os sacerdotes do sol e as sacerdotisas da lua, que era, na verdade, a luta antiga, inevitável e eterna, declarada ou dissimulada, entre o principio masculino e principio feminino que preenche de seus desfechos alternativos a História e onde se tece o segredo que explica os mundos: é a fusão perfeita entre masculino e feminino que constitui a essência e o mistério da divindade, assim é só o equilíbrio entre estes dois princípios que produz as grandes civilizações.

Na Trácia, bem como na Grécia, o culto dos deuses cosmogónicos e solares tinha sido afastado para as altas serras e montanhas, lugares ermos e regiões desertas. O povo preferia os cultos lunares das divindades femininas que celebravam as paixões perigosas e as forças cegas da natureza: a divindade suprema era feminina. Surgiram então os abusos, nos quais as sacerdotisas do culto lunar se apropriaram, num acto de supremacia da mulher sobre o homem, do antigo culto de Baco, tornando-o sangrento e temível, tomando o nome de Bacantes para simbolizar sua vitória e seu domínio soberano. Eram magas sedutoras, cujos rituais sacrificavam seres humanos e celebravam Hecate, divindade, e Baco, divindade com face de touro com suas danças sensuais, em seus santuários de vales selvagens e escondidos, no seio da vegetação luxuriante e magnífica. Os sacerdotes do culto solar que aí se aventuravam, tentando espiá-las para desvendar seus segredos, eram capturados e imediatamente mortos. Muitos dos chefes trácios permaneceram fiéis ao culto solar, mas as Bacantes ganharam à sua causa, pela volúpia e pelo terror, muitos dos reis trácios que aos costumes bárbaros deste povo austero e guerreiro uniram de os gostos luxuosos e refinados descobertos ao contacto da Ásia. Os deuses tinham dividido a Trácia em dois campos opostos e inimigos: os sacerdotes do culto solar, de Zeus e Apolo, no cimo das serras e das montanhas, mostravam-se impotentes a travar, nos vales, o culto lunar que ameaçava chegar aos Templos das divindades do sol.

Orfeu - 2



A Grécia pré-órfica - A Trácia - 2


A noroeste da Grécia existia a Trácia (actualmente dividida entre Grécia, Bulgária e Turquia desde 1919/1923), pais selvagem e rude de altas montanhas cobertas de carvalhos gigantes, varridas pelo vente do norte e frequentes trovoadas e chuvas torrenciais. Aí viviam os Dórios, raça guerreira (cujo modelo social foi mais tarde imitado por Esparta) de origem indo-europeia que acabaria por invadir toda a Grécia em 1200 a.C., substituindo nas cidades gregas a monarquia pela oligarquia e iniciando a época áurea da civilização dórica.

A Trácia foi sempre considerada pelos gregos como uma região santa, o país da luz espiritual e a verdadeira pátria das musas. Trácia, “Trakia”, tem origem etimológica na palavra fenícia “rakhiwa”, que significa espaço etéreo ou firmamento. No alto de suas montanhas existiam os mais velhos templos de Zeus, Crono, Urano. Aí tinham tido suas origens a poesia, as leis, as artes sacras, que a civilização ocidental deve à Grécia, pela mediação de Roma.

Segundo a antiga tradição trácia, a poesia foi inventada por Olen, palavra fenícia que significa o “ser universal”. Apolo tem a mesma raiz – Ap-Olen – e significa o “pai universal”. No inicio, a cidade de Delfos cultuava o ser universal sob o nome de Olen; o culto de Apolo veio depois, sob a influência da doutrina do verbo solar, vinda dos templos da Índia e do Egipto. Apolo, o pai universal, tinha dupla manifestação: a luz espiritual, hiperfísica, e a manifestação da estrela solar no céu. Porém, este culto era reservado aos iniciados, no templo de Delfos, e foi Orfeu que a desenvolveu nos mistérios dionisíacos e deu outra dimensão ao verbo solar de Apolo.

Para os maiores poetas, filósofos e grandes iniciados da Grécia, tais como Pindare, Ésquilo ou Platão, o nome da “Trácia” tinha uma forte simbólica e significava “o pais da doutrina pura e da poesia sagrada”, tendo um sentido filosófico e histórico: era uma região intelectual, o conjunto das doutrinas e das tradições segundo as quais o mundo é obra de uma inteligência divina; e também era a raça dórica, herdeira do antigo espírito ariano, a que a Grécia devia a doutrina e a poesia cultuadas no templo de Apolo em Delfos.

Os maiores poetas da época eram trácios: Thamyris, Linos ou Amphion inventaram a poesia cosmogónica, a poesia da doutrina solar (ou doutrina dórica mais ortodoxa e que influenciou as artes e toda a civilização helénica) e a poesia do culto lunar (mais emotiva, lacrimosa e voluptuosa). A poesia era então considerada a linguagem dos deuses, a consagrar uma teologia, cobrindo com o véu da alegoria os mistérios da natureza e os mais sublimes conceitos morais, só compreensíveis aos iniciados desses mistérios. Etimologicamente, “poesia” tem sua origem nas palavras fenícias “phohe” (voz) e “ish” (deus).

Orfeu - 1


Edouard Schuré, filósofo e poeta francês (1841-1929), no seu livro "Os Grandes Iniciados" (Les Grands Initiés, Paris, 1889), escreveu sobre Orfeu (Livro V) vários cápitulos que me decidi finalmente a traduzir para o blog... deixo neste post a primeira parte...



A Grécia pré-órfica - A Trácia - 1


Nos templos de Apolo que guardavam a tradição órfica, a cada equinócio de primavera celebrava-se numa festa secreta a vinda anual do deus invisível de regresso do país hiperbóreo. A grande sacerdotisa entoava, perante alguns iniciados, o cântico do nascimento de Orfeu, filho de Apolo e de uma sacerdotisa deste deus, invocando a alma daquele que fora o pai dos místicos, o salvador melodioso dos homens, o rei imortal e três vezes coroado: no inferno, na terra e no céu, em que tem lugar entre os deuses e as estrelas.

Esse cântico místico da sacerdotisa de Delfos celebra o segredo apenas conhecido do Templo e ignorado do povo: Orfeu foi o anjo descido dos céus para despertar a alma mística da Grécia. Cada uma das sete cordas da lira de Orfeu despertou uma virtude da alma humana, uma lei das ciências e das artes, e as sete juntas vibravam em plena harmonia com todo o universo. Perdeu-se o cântico dessa plena harmonia, mas cada uma das ciências e das artes que Orfeu despertou na Grécia foram transmitidas pela civilização helénica a toda a Europa.

Vivemos numa época de (quase) plena devoção ao materialismo, em que a alma humana está perturbada pela perda da fé nas belezas naturais da vida e por correrias, angustias, depressões e outros “stresses”, doenças modernas que escondem uma profunda, inconsciente e invencível esperança de reencontrar um sentido harmonioso e espiritual à existência. E esta inconsciente esperança e teimosa fé na beleza da vida, o Ocidente deve-a a Orfeu, que iniciou a Grécia antiga à poesia e à música enquanto artes reveladoras da verdade eterna.

A Grécia do tempo de Orfeu, era a do tempo em que Moisés tirava o povo hebreu do cativeiro egípcio, cinco séculos antes dos cânticos de Homero, treze séculos antes de Jesus reencarnar na Galileia. A Índia, perdida a sua antiga gloria e mística da epopeia ariana de Rama (5ooo a 4000 a.C.), entrava na sua idade das trevas, o Kali-Youg, enquanto aguardava o novo mensageiro de Deus, Krishna. A Assíria, liderada pela tirânica cidade de Babilónia, esmagava a Ásia e libertava no mundo o flagelo da anarquia. O Egipto, brilhante civilização pela ciência dos seus sacerdotes e pelos seus faraós, tentava resistir a essa fase de degradação geral, mas a sua influência só se fazia sentir do mediterrâneo até ao Eufrates.

Na Grécia, reinava a divisão na religião e na política.

Península serrana e montanhosa, de orla marítima rendilhada e cercada de uma multidão de ilhas do mediterrâneo, tinha sido colonizada desde o II milénio a.C. por sucessivas raças de povos navegadores, desde celtas, indo-europeus, egípcios e fenícios, que se misturaram e formaram um idioma harmonioso e simples, que parecia imitar todas as vozes da natureza, mas influenciaram culturas e religiões diversificadas. Nessa época, toda a vida intelectual era exclusivamente provinda dos templos, e cada uma das religiões da Grécia representava conceitos diferentes de natureza, organizações diversas de vida social, civil e religiosa, e leis próprias. O povo adorava diversas divindades locais, deusas tais como Afrodite, Ártemis, Ceres (Deméter), em cuja protecção confiava cegamente. As divindades masculinas, mais cosmogónicas, eram cultuadas por iniciados, sobretudo em lugares retirados, no alto das serras e das montanhas gregas, mas pouca influência tinham. Aos mais universais Apolo, o deus solar, ou Zeus, preferiam-se as deusas que representavam as poderosas e temidas forças, sedutoras ou terríveis, da natureza. Mas sendo divindades locais, as cidades e templos rivais guerreavam entre si, movidos por ódios e ambições de sacerdotes e reis.